Com o passar do tempo, por vezes sem darmos conta, deixamos que certos legados se desvaneçam no tempo, e assim esquecemos os seus mentores.
Tudo tem um princípio e só a partir desse ponto de partida se poderá evoluir. Mas esse “salto inicial” normalmente encerra em si um enorme esforço e dedicação de quem o idealizou, planeou e concretizou pela primeira vez.
É como tudo na vida, o difícil é ter ideias e boas ideias, depois “basta” manter o ímpeto e evoluir. Mas este caminho que depois se trilha, não deverá desvirtuar o conceito inicial que esteve na “génese da criação” de determinado evento.
Infelizmente são muitos os casos em que quem assume a responsabilidade de determinado evento a toma como sua, e em nome da evolução, adultera completamente o conceito inicial. Isso não é evoluir, é criar um evento novo, mas aproveitando o impacto e amplitude que a ideia inicial granjeou.
Mas há igualmente outros em que todos estes princípios se mantêm e os legados são honrados. Com a evolução, vem normalmente a maior dimensão e como consequência a responsabilidade também aumenta, como o evento de que a seguir vou falar.
Celebrou-se no dia 07 de abril de 2024 o 26º Dia Nacional do Motociclista. Será que as novas gerações de Motociclistas sabem como nasceu este evento? Já pesquisei em inúmeros locais e não encontrei a História do Dia Nacional do Motociclista.
Penso que caberia à Federação de Motociclismo de Portugal ter no seu site algo alusivo a uma Celebração Nacional, organizada sob a sua égide.
Assim, vão sendo cada vez menos aqueles que sabem que houve um Padre Motard, com a sua Yamaha Diversion 900, chamado Zé Fernando, natural da Aldeia de Joanes, Fundão que era pároco na Vila do Bispo, Distrito de Faro. Um dia, por ocasião da Concentração do Motoclube Os Corvos de São Vicente, ele sugeriu trazer as motas para o adro da igreja da Vila do Bispo e fazer uma celebração religiosa (missa) em homenagem aos mortos na estrada e para proteção de todos.
Foi com alguma relutância inicial que a população acolheu esta ideia, mas tudo decorreu de tal forma tranquila que nos anos seguintes, toda a população se integrava no evento.
Foi esta a génese das comemorações do Dia Nacional do Motociclista. Foi assim que em 1997, na igreja do Mosteiro dos Jerónimos se celebrou pela primeira vez o Dia Nacional do Motociclista. Fomos mais de 15000, em que só cerca de 1000 pudemos entrar na Igreja e no final, o Padre Zé Fernando percorreu os arruamentos e jardins em frente ao Mosteiro, onde tínhamos estacionado as motas, em cima de um VW carocha amarelo, descapotável, para proceder à bênção das motas e capacetes. INESQUECÍVEL!
Durante três anos manteve, na Rádio Jornal do Fundão, um programa radiofónico semanal intitulado ‘Crónica Motard’, e em 1997 recebeu o Diploma de Mérito de Motociclista.
Em 2002, conseguiu que as celebrações ocorressem em Fátima, com as motas a entrar no recinto. Foi um momento único, pois foram dezenas de milhares de motas a entrar pelo portão do recinto. A regra era a proibição de haver motores a trabalhar em qualquer circunstância e, num sinal de reconhecimento e respeito, não ouvi nada durante todo o evento, até à retirada do local. A minha mota na altura era uma BMW K1200 LT e, como fui dos primeiros a entrar, após a descida do portão, o balanço não chegou para avançar até onde deveria ficar, e eu sozinho não conseguiria de forma nenhuma empurrar aquele “bicho pesado”. Assim, não só comigo, mas com todos os outros nas mesmas circunstâncias, havia sempre um grupo de pessoal disponível para dar o empurrão necessário. O exemplo da entreajuda.
José Fernando conciliava o sacerdócio com o amor pelas motas, tendo a 17 de abril de 2011, em Coimbra (Dia Nacional do Motociclista), celebrado uma última missa para benzer as motas e os capacetes. Após aturado trabalho com o Patriarcado, designou o Arcanjo S. Rafael como Padroeiro dos Motards.
Morreu com cancro em março de 2013.
Este foi o legado deixado pelo saudoso Padre Zé Fernando, que nunca deveremos esquecer, especialmente quando no final ele se despedia de nós, dizendo:
“Irmãos motociclistas ide em paz e não se esqueçam, até 120 Deus protege-vos. Acima de 120, Deus acolhe-vos. Boas curvas, se Deus quiser”.
Crentes ou não, o simbolismo das palavras é incontornável.
Boas curvas